domingo, 4 de novembro de 2012

A estrada de leite - conto / Arlindo Fernandez



Eu sempre vivi aqui, desde que nasci. Mas a casa onde morei com os meus pais, era perto daquele lago. Hoje é tapera e só os patos dormem lá. Meu pai era uma criatura misteriosa, sonhava com estrelas, mundos distantes e patos. Desde pequeno ouvia meu pai dizer que construiria uma nova casa sobre este morro. Foram nove anos de trabalho duro - eu, minha mãe e meu pai. A casa ficou bela, sobretudo à noite, quando o telhado, o terreiro e o caminho formavam uma estrada branca – como leite. Reflexo do céu. Foi plano de meu pai fazer a nossa casa bem debaixo daquela estrada branca e prateada. Era rota dos patos, uma estrada noturna ficava de cabeça pra baixo e latejava muito. Meu pai dizia que era a estrada de leite e que estava ali desde que eu nasci – foi numa noite que chorei de fome e apertei com força o seio da minha mãe, jorrando aquele leite estrelado.

No inverno, as noites eram profundas, brilhantes, e seu peso caía sobre nossos corpos - geralmente deitávamos no chão do terreiro da nossa casa, lugar onde minha mãe desapareceu numa porta que se abriu no céu. Depois disso, meu pai ficou triste e seguiu seu caminho, sua rota, junto com os patos que migravam para o sul. Fiquei ali sozinho, à mercê do fluxo daquela estrada, que trazia coisas com o vento.
Um poderoso silêncio de pedra se apoderou de mim e da casa, transformando-a numa taberna na beira de um caminho. Eu ouvia uma voz que vinha da noite e que, repetidas vezes, dizia; “Juno, olha os deslimites das alturas; creia, esta estrada também tem um lado de dentro”. A voz foi um presságio das alturas.

Numa noite, aquela porta apareceu no espaço mais uma vez. Dela, saiu um homem que trajava roupas velhas surradas, tinha o couro enraizado pelo tempo, cabelos, barbas esbranquiçadas e se parecia com nada conhecido. Ele tossia luz, também falava em língua de próton e nêutron, tinha o cheiro de malva e contava histórias sobre mares extintos e universos reais, com determinismo científico. Este andarilho das estrelas foi meu preceptor, seu lado de dentro atendia pelo nome de Vaziador. Com ele aprendi a ler céus, vácuos e também que todos os universos que circundam o Cosmos são feitos de vazios, grandes vazios, inclusive o próprio Universo.

Ocupei todo o meu desconhecer e formulei a teoria da não existência vã. Vaziador seguiu seu destino e partiu num pacote de luz pela mesma porta que chegou. Fiquei novamente exposto à desmedida do tempo que cruzava de arribação. Meu corpo iniciou uma mutação com resíduos da vida anterior, preenchi todo o vazio do meu corpo com átomos de luz – virei um acelerador de partículas atômicas - e isso me permitiu fazer viagens inacreditáveis por universos demasiadamente atemporais, distâncias fabulosas em tempos inimagináveis.

A cozinha da nossa casa era ampla. Tinha um guarda-comida, fogão de ferro, antigos utensílios de cobre, tachos e uma enorme mesa com oito cadeiras de madeira. É justamente numa das pernas desta mesa que me mudei numa torrente de energia, que desintegrou meu corpo, adentrou no desvão e depois num átomo da madeira como uma nave, revelando aos meus olhos um universo repleto de mundos e criaturas alheios a meus anseios e conhecimentos. No interior de um átomo, na superfície do elétron, numa charneca onde construí minha nova morada, pude observar um outro céu, vasto, com dois sóis, vários mundos e luas verdes, azuis e vermelhas, vizinhas ao meu. A nossa casa, lá fora, ficou só. Eu continuei dentro dela e aquele universo criou limo pelo lado de fora. O telhado e o terreiro ainda eram um espelho para a estrada de leite. Os patos continuaram em seus vôos matemáticos no silêncio noturno do inverno, todos os anos. Junto deles, meu pai, que carregava o tempo nas asas.
Aquela porta, um holograma que se abriu sobre o céu de nossa casa inúmeras vezes e engoliu a minha mãe, se trancou para sempre. E, na ampla cozinha da casa, numa perna da mesa onde comíamos juntos, emprestei um coeficiente de magia e me perpetuei. Foi o ovo da gênese, num sistema planetário de prótons, nêutrons, elétrons e quarks.

Fim